Decisões, quaisquer que sejam, provocam reflexões. Natural que assim seja, sobretudo quando geram impacto no mercado e são proferidas por órgão de peso, como é o caso da ANTAQ – Agência Nacional de Transportes Aquaviários, que tem a função precípua de gerenciamento da infra-estrutura e da operação do transporte aquaviário.
Não se olvida que cabe à ANTAQ, como agência reguladora que é do setor, promover políticas públicas, além de normatizar, fiscalizar, julgar e sancionar, seguindo os princípios e diretrizes gerais claramente estabelecidos na Lei n.º 10.233, de 05 de junho de 2001.
Nessa conjectura, a recente decisão proferida pela ANTAQ no processo 50300.016021/2021-73, com base na Nota Técnica nº 47/2021/GRM/SRG, merece uma análise mais aprofundada, principalmente sob o viés legal, ao tratar da “RN 18/ANTAQ – Responsabilidade solidária dos despachantes aduaneiros na cobrança de demurrage.”
Com efeito, se o objetivo é o cumprimento desse comando por todos os envolvidos, é recomendável que a decisão em voga esteja em consonância com o entendimento já consolidado pelo Poder Judiciário, a fim de se evitar que, por força do princípio constitucional do acesso à Justiça, a parte que se sinta prejudicada opte pela judicialização, acirrando ainda mais os litígios daí decorrentes; quando o que se espera, na verdade, é o reverso, ou seja, a pacificação pela normatização da agência reguladora.
Com essa ideia em mente é que se propõe a presente reflexão, com vistas ao amadurecimento democrático da decisão proferida no citado processo, até mesmo como forma de assegurar, de forma tranquila, o seu efetivo cumprimento por todos os players.
Partindo dessa premissa, cumpre enfatizar, inicialmente, que a sobre-estadia de container é, sabidamente, instituto inerente ao Direito Marítimo e que, a par da realidade contextual histórica de fazer parte dos usos e costumes do comércio marítimo internacional de carga conteinerizada, tem expressa previsão contratual para a sua cobrança contra o consignatário, no caso de inobservância do prazo pré-estabelecido para a utilização do equipamento.
Seja no próprio Conhecimento de Embarque (Bill Of Lading), seja em documentos anexos a depender de cada transportadora (os quais, por sua vez, fazem alusão detalhada acerca da cobrança, como a previsão dos valores a serem aplicados de acordo com o tipo e tamanho do container, além dos prazos de estadia livre, preservando a transparência e previsibilidade exigidas corretamente pela ANTAQ), certo é que a cobrança de sobre-estadia, geralmente, se dá com base no alegado descumprimento do contrato de transporte de mercadorias pelo consignatário, independentemente do termo de devolução de contêineres.
Nesse diapasão, há que se recordar ainda que, em se tratando de contrato tipicamente de adesão, como é o caso do Conhecimento de Embarque e seus anexos, não há que se cogitar da incidência das disposições do Código de Defesa do Consumidor para socorrer eventual reclamo daqueles que sustentam a abusividade de valores cobrados, ou, até
mesmo, desconhecimento das disposições contratuais que regem a cobrança, salvo raras
exceções. Anote-se que o entendimento predominante da jurisprudência é no sentido de não reconhecer a figura do destinatário final, nos termos do art. 2º da Lei 8.078/90, se o contrato de prestação de serviço de transporte marítimo foi firmado com a finalidade de incrementar a atividade empresarial do consignatário. A propósito.[1]
Falar mais significa repetir uma obrigação que, além de prevista e documentada em contrato e seus anexos, está solidificada na jurisprudência, motivo pelo qual não se pode alegar desconhecimento ou ausência de previsão contratual a respeito da cobrança de demurrage, sendo despicienda a formalização de termo de devolução de contêineres pelo despachante aduaneiro.
À luz dessas considerações iniciais, é possível concluir, sem maior dificuldade, que a cobrança judicial da sobre-estadia não está condicionada à celebração do termo de devolução dos contêineres, e tampouco vincula o despachante aduaneiro. Aliás, nesse ponto, a jurisprudência novamente já assentou que tal documento é dispensável, especialmente porque as ações de cobrança costumeiramente são fundadas no descumprimento de cláusula contratual pelo consignatário e não no citado termo, daí porque este se mostra irrelevante, ao menos no contexto jurídico.
Logo, da análise da jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o termo de devolução de contêineres não é documento essencial à propositura de ação de cobrança judicial de sobre-estadia em relação ao consignatário da carga.
Sem embargo, a questão em análise transborda a mera identificação da existência ou não do termo firmado pelo despachante aduaneiro e deve ser redirecionada, salvo melhor juízo, ao seguinte ponto central, mais abrangente: se a formalização desse documento pelo despachante aduaneiro, em nome próprio, como devedor solidário, decorre efetivamente de imposição abusiva do transportador.
Como visto, a despeito de não se tratar de relação de consumo, inclusive sob a ótica do despachante aduaneiro (o que descaracteriza a usual alegação de vulnerabilidade), o princípio da boa fé objetiva norteia, primordialmente, as relações de cunho eminentemente comercial, de modo que não se pode simplesmente presumir, à mingua de qualquer indicativo palpável, que o transportador exija o indigitado termo, mediante coação, prejudicando a livre manifestação de vontade do despachante.
Em resumo, inexistindo prova, não se admite tal presunção e, por consequência, não se pode rotular genericamente que, havendo termo de responsabilidade firmado pelo despachante (ainda mais em nome próprio), esse documento seja decorrente de imposição abusiva do transportador, o que, aliás, não tem qualquer propósito, mormente se considerada, via de regra, a superior capacidade financeira do consignatário da carga para suportar o pagamento dos custos de sobre-estadia.
Em contrapartida, na hipótese de haver sinalização de imposição abusiva ao despachante aduaneiro, capaz de macular sua manifestação de vontade, caberá a este respaldar-se em prova segura, preferencialmente documental, para se socorrer da agência reguladora visando às devidas apurações, sem prejuízo das medidas judiciais pertinentes para assegurar seus direitos. Porém, caso o indigitado termo de responsabilidade seja firmado de livre e espontânea vontade pelo despachante, em nome próprio, por conveniência comercial junto ao seu cliente, sob a promessa de celeridade e eficiência, poderá o transportador acionálo judicialmente para cumprir a sua obrigação, o que muito provavelmente será acatado pelo Poder Judiciário, tornando, assim, letra morta a decisão da ANTAQ.
Sob o ponto de vista estritamente jurídico, não se pode perder de vista que o indigitado termo representa um negócio jurídico válido, por possuir agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, além de forma prescrita ou não defesa em lei, tal como expressamente prevê o artigo 104 do Código Civil vigente. Eventual vício de consentimento, repita-se, demanda prova segura nesse sentido.
A questão ganha contornos, ainda mais relevantes, quando se verifica que o citado termo é firmado pelo despachante aduaneiro em nome próprio.
É importante distinguir as obrigações contraídas por mandato daquelas contraídas em nome próprio e solidariamente.
Dispõe o artigo 653 do Código Civil, verbis: “Opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato.”
Se o despachante representa o consignatário por mandato, fato este incontroverso, aplica-se o artigo 663 do Código Civil, verbis: “Sempre que o mandatário estipular negócios expressamente em nome do mandante, será este o único responsável, ficará, porém, o mandatário pessoalmente obrigado, se agir no seu próprio nome, ainda que o negócio seja de conta do mandante.”
Por outro lado, a obrigação contraída em nome próprio pelo despachante aduaneiro gera consequências distintas, na medida em que caracteriza uma obrigação decorrente da manifestação de sua livre vontade, e não uma obrigação derivada do exercício do mandato.
Não bastasse assumir a responsabilidade pelo pagamento da dívida, o despachante aduaneiro ainda o faz de forma solidária ao seu cliente, de modo que se sujeita, indubitavelmente, às normas ordinárias da legislação civil sobre a solidariedade, a qual não se presume, na dicção do artigo 264 do Código Civil.
Neste particular, cabe rememorar que, na forma do artigo 265 da lei civil, a solidariedade resulta da lei ou da vontade das partes, e, assim, eventual termo firmado para devolução de contêiner representa – ou deve representar – a pura manifestação de vontade do despachante aduaneiro de assumir, em nome próprio, uma obrigação que, originalmente, não lhe incumbia, na medida em que o despachante, de fato, não faz parte do contrato de transporte, tal como bem pontuado na decisão proferida pela ANTAQ.
Nesse contexto, exsurge a legitimidade ad causam do despachante aduaneiro para figurar no polo passivo das ações de cobrança de sobre-estadia, especialmente à luz do que dispõe artigo 275 do Código Civil, verbis: “O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto.”
A esse respeito, J. M. de Carvalho Santos doutrina que: “(…) enquanto não for integralmente paga a dívida, mantém-se íntegro o direito do credor em relação a todos e a qualquer dos outros devedores, não se podendo, mesmo, presumir a renúncia de tais direitos do fato de já ter sido iniciada a ação contra um dos devedores.” (‘Código Civil brasileiro interpretado’, Ed. Freitas Bastos, 1976, 10ª ed., vol. 11, pág. 250)
Nesse sentido acena também a jurisprudência majoritária de nossas Cortes2.
Aprofundando ainda mais no âmago da discussão, é relevante destacar que não se discute aqui a importância e função do despachante aduaneiro como sendo aquele profissional habilitado pela Receita Federal do Brasil para desembaraçar os despachos burocráticos na importação ou exportação. Igualmente não se olvida que o despachante, em princípio, também não participa da formação do contrato de transporte internacional marítimo.
Entretanto, a responsabilização do despachante aduaneiro no termo de devolução dos contêineres não acarreta qualquer infração ao disposto no artigo 13 da Resolução 18/20117 da ANTAQ, que veda que transportadores marítimos e agentes intermediários lhe façam a cobrança direta, por ser terceiro estranho à relação jurídica, devendo se limitar a cobrar os valores do embarcador, consignatário, endossatário ou portador do conhecimento de carga. Isso porque, na perspectiva legal, a legitimidade passiva do despachante aduaneiro nas ações de cobrança de sobre-estadia fundadas no aludido termo se justifica, segundo entendimento pacífico da jurisprudência, por se tratar de obrigação solidária, independente, portanto, da obrigação principal.
2 “Apelação. Transporte marítimo. Ação de cobrança pela devolução tardia de contêiner quando transcorrido o prazo de ‘free
time’. Demurrage. (…) Legitimidade passiva da apelante. Hipótese em que o despachante aduaneiro, na qualidade de representante legal da consignatária da carta, assumiu a responsabilidade de devolver os contêineres vazios, no mesmo estado em que foram recebidos, bem como custear e realizar os pagamentos incidentes, inclusive em caso de sobre-estadia. (…) Cobrança legítima. Sentença mantida. Recurso não provido.” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 21ª. Câmara de Direito Privado, Apelação cível nº 1019366-10.2019.8.26.0562, rel. Des. Décio Rodrigues, DJ. 26/07/2021)
“AÇÃO DE COBRANÇA. TRANSPORTE MARÍTIMO. ATRASO NA DEVOLUÇÃO DE CONTÊINERES. SOBRE-ESTADIA. AUSÊNCIA DE CONHECIMENTO DE EMBARQUE ORIGINAL. APTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL. A juntada de conhecimento de transporte original não se mostra necessária para cobrança dos valores advindos do atraso na devolução dos contêineres, pois o pedido de cobrança é lastreado no Termo de Responsabilidade por Devolução de Unidade de Carga. (…). LEGITIMIDADE PASSIVA PARA PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO EM RELAÇÃO AO CONTÊINER HBLU1446692. A ré, representada por seu despachante aduaneiro, autorizou a cobrança de despesas de sobre-estadias pela autora. Desse modo, embora não conste como consignatária daquela carga, a ré assumiu a responsabilidade pelo pagamento da indenização cobrada pela autora. Condição da ação reconhecida. (…).” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 20ª. Câmara de Direito Privado, Apelação cível nº 1024782-90.2018.8.26.0562, rel. Des. Alexandre David Malfatti, DJ. 20/09/2021)
“Demurrage – Inequívoca responsabilidade do importador pelo pagamento de sobreestadia pelo atraso na devolução de
container, haja ou não cláusula contratual nesse sentido – Prática encontrando amparo jurídico nos usos e costumes do comércio, do pleno conhecimento de empresas como as litigantes, especializadas, ambas, em negócios tais – Hipótese em que, de todo modo, o instrumento do termo de responsabilidade é expresso ao estabelecer tal responsabilidade – Diária da sobre-estadia regularmente assentada no termo de compromisso e em presumível consonância com o que se cobra a esse título no mercado internacional.” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 19ª. Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 1009369-66.2020.8.26.0562, Rel. Des. Ricardo Pessoa de Mello Belli, DJ. 18/06/2020)
Em resumo, se constituído por mandato apenas para garantir o cumprimento das regras legais, tributárias e aduaneiras pertinentes à carga, outra não poderia ser a solução senão o acolhimento da ilegitimidade passiva do despachante aduaneiro. Todavia, ao assumir a responsabilidade pelo pagamento da demurrage no termo de devolução de contêiner, em nome próprio e solidariamente, o entendimento é diverso.
Em linhas gerais, bem se vê que, invariavelmente, as decisões judiciais são fundamentadas na legislação civil aplicável à espécie, de tal maneira que o despachante aduaneiro deve ter sua atuação pautada nos limites do mandato que lhe foi conferido pelo seu cliente, a fim de evitar a sua responsabilização pessoal nas ações de cobrança de sobreestadia. Sem prejuízo disso, é resguardada ao despachante a possibilidade de acionar a ANTAQ sempre que houver prova segura acerca da imposição abusiva à formalização do termo a ponto de prejudicar a livre manifestação de sua vontade, no exercício do seu mister.
[1] REsp 1599042/SP, 4ª. Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: Apelação cível nº 4004043-21.2013.8.26.0562, Rel. Des. Campos Mello; Apelação cível nº 4003404-03.2013.8.26.0562, rel. Des. Hélio Nogueira; Apelação cível nº 1009102-36.2016.8.26.0562, Rel. Des. Matheus Fontes.